domingo, 6 de dezembro de 2015

A Florianópolis náutica de 1911 - por Annibal Amorim


Em infindável pesquisa sobre o Porto de Florianópolis, deparei-me com o diário de Annibal Amorim, escrito a bordo do vapor "Saturno", navio de cargas e passageiros do Lloyd Brasileiro que escalava a capital catarinense.

A obra, com mais de quinhentas páginas, é um monumental guia de viagem sobre o Brasil da época. 

Escrito em prosa elegante, poética, traz ao presente informações históricas muito interessantes. Faz-nos viajar no tempo!


Annibal nasceu na vila de Coração de Maria, Bahia, a 17 de agosto de 1876. Abraçou a carreira das armas. Além dos cursos militares, tem ainda o diploma de engenheiro civil. Poeta, escritor e jornalista. Autor de "Viagens pelo Brasil", publicado pela editora Garnier, com 80 ilustrações, em 1917.

Destaco trecho, no português da época, sobre a escala na capital catarinense, em 1911, nos últimos dias de abril:

Florianópolis. 4 horas da tarde. A cidade levanta-se na parte media do estreito, entre o mar e o montanha, sobre que repousa grande parte de suas edificações. Defronte da capital o estreito tem apenas uma largura de 350 metros. 

A barra do norte dá entrada franca aos maiores navios, que passam entre a ponta do Rapa e a ilha do Arvoredo.

Não só a amenidade do clima, senão também a própria situação geographica da ilha, foram motivo da ambição de alguns paizes estrangeiros, na época da colónia.

Diaz de Solis, o descobridor do Rio da Prata, foi também o descobridor da ilha de Santa Catharina, no anno de 1515 (segunda viagem). Solis estava ao serviço de Hespanha, e procurava, pelo sul da America, um caminho para as índias.

A essa ilha deu elle o nome de ilha dos Perdidos. A esse tempo era ella habitada pelos Índios Carijós, que lhe chamavam Juriré-Mirim.

Mais tarde, recebeu a denominação de ilha dos Patos, por causa do grande numero de Índios Patos que alli havia, emigrados das margens da lagoa que tomou o nome da tribu.

Os bandeirantes paulistas, ousados caçadores de ouro e de Índios, quando chegaram áquella ilha, em melados do século XVII, já alli encontraram os jesuítas. 

O colono Francisco Dias Velho Monteiro (1650), um dos fundadores da actual Florianópolis, construiu a capella de Nossa Senhora do Desterro. Velho Monteiro deu á ilha o nome de Santa Catharina, em homenagem á Catharina, sua filha mais velha. Esse nome tornou-se extensivo, mais tarde, a todo o território da antiga província.

O desembarque, em Florianópolis, é ainda primitivo. Vê-se alli uma velha ponte de madeira, com uma escada, junto a qual atracam botes e lanchas a gazolina, conduzindo passageiros. 

Em soprando fortes ventos, as aguas do estreito se agitam, e o desembarque é bastante desagradável. 

A cidade conta 18 mil habitantes. A primeira impressão que della se recebe é favorável. 

Salta-se na praça Quinze de Novembro, regularmente arborizada. Na parte mais elevada da mesma praça vê-se um passeio publico, com grades de ferro, bancos e coreto para musica. No centro do logradouro, ergue-se o monumento aos voluntários da Pátria.

É de alvenaria e, nas suas faces, lêm-se os nomes dos catharinenses mortos na guerra do Paraguay. 

Na praça Quinze de Novembro, notam-se os cafés Natal, do Commercio e Popular, bastante frequentados á noite, pela gente que se diverte. 

Chamam a attenção uns tantos hábitos smarts do Rio de Janeiro : pequenas mesas pelas calçadas, onde se tomam refrescos e sorvetes; ha illuminação eléctrica e agua canalizada. 

Não ha porém ainda rede de esgotos, muito mais necessária do que lâmpadas de arco voltaico. 

As ruas são estreitas, á moda e gosto da colónia. Algumas são bonitas e bem construídas, como a Conselheiro Mafra, a Esteves Júnior, a Marechal Deodoro, a Tenente Silveira e a Jeronymo Coelho. 

A praça Pereira de Oliveira tem arborização. A General Ozorio, onde se acha o quartel do 54.° de Caçadores, é velha e feia. 

O Palácio do Governo, o do Congresso, o Lyceu de Artes e Officios, o Hospital de Caridade (na encosta da montanha), o theatro Álvaro de Carvalho, o Tribunal de Relação, a Intendência Municipal e o Banco de Porto Alegre, são edifícios de construcção moderna.

Uma pequena linha de bondes parte do trapiche Rita Maria e vae até á estação agronómica, servindo as ruas mais centraes.

A cidade dispõe de um gymnasio, onde se ministra a instrucção secundaria. 

O grande commercio é allemão, e dentre as casas allemãs destaca-se, pela sua importância, a de Carlos Hoepeke, que mantém uma linha de vapores entre Florianopolis e Laguna.
Hotéis: o Grande Hotel e do Commercio, que são os mais dignos de nota. Nelles se comem excellentes camarões, prato vulgar em Santa Catharina, que bem poderia chamar-se o paiz dos cama-
rões.
Clubs: o Musical, o Beethoven, o Dezeseis de Abril e o Doze de Agosto. 

Jornaes : O Dia e a Folha do Commercio.

Igrejas : a cathedral e a de São Francisco. 

Guarnição federal : o 54.° de Caçadores e o 8.º de Artilheria de Posição, ambos mal aquartelados. 

Força poLicial : um batalhão de infanteria e um esquadrão de cavallaria.

Ha um asylo de mendicidade. 

Arrabaldes: Praia de Fora, onde
nasceu o grande poeta Luiz Delfino, e Matto Grosso. 

Praia de Fera é um logar encantador, uma espécie de Copacabana, em ponto pequeno, com as suas chácaras, suas vivendas elegantes, rodeadas de bellos jardins, com grades de ferro, cobertas de trepadeiras; repuxos de aguas cantantes, acima dos gramados, e caminhos a macadam.

Um recanto delicioso de Florianópolis. É uma compensação para os olhos que, dias antes, viram cidades carunchosas e decrépitas, como Paranaguá, Antonina e São Francisco.

Do outro lado do estreito, no continente, fica a cidade de S José. Perto della, o arraial da Palhoça. 

O Estado de Santa Catharina, sendo um dos mais bem favorecidos pela natureza, é, entretanto, um dos mais pobres. Podendo exportar tudo, quasi nada exporta. A sua maior exportação consiste em bananas para o Rio da Prata. Vende a outros Estados, mas em pequena escala, lacticínios, farinha e cereaes.

Florianópolis não tem mais para onde expandir-se. Se outra fosse a prosperidade de Santa Catharina, já de ha muito a sua capitai estaria ligada ao continente por uma ponte metálica, meio giratória.

A população derramar-se-hia do outro lado do estreito, lembrando
Constantinopla e Scutari, da outra banda do Bosphoro, em território asiático. 

Quem sabe se, dentro de 20 annos, esta fantasia não será uma agradável realidade para os catharinenses?
Para completar a obra. uma estrada de ferro de S. José a Lages canalizaria para Florianópolis toda a producção de uma das regiões mais ricas do Estado. A construcção dessa linha acaba de ser contratada pelo governo estadoal. 

É para notar como em Santa Catharina, as populações de origem germânica, muito mais moças que as de origem portugueza e brazileira, prosperam muito mais rapidamente que estas. 

Basta ver Blumenau, colónia que o Dr. Hermann Blumenau fundou, em 1850, e que é hoje uma cidade maior e mais adeantada que Florianópolis, fundada, como já se disse, em melados do século XVII. 

Este parallelo é desfavorável para nós. Serve, todavia, para mostrar o quanto nos distanciamos dos allemães, no espirito de iniciativa, na ordem, na perseverança e até no bom gosto das coisas. As povoações germânicas deveriam de ser um modelo a imitar pelas povoações brazileiras, que na estrada larga do progresso marcham a passo de cagado.
Blumenau e Joinville são as duas cidades mais bellas e mais prosperas de Santa Catharina, graças ao génio da raça teutonica.

E ainda ha quem maldiga o estrangeiro, num paiz despovoado como o Brazil, onde o mestiço muito pouco faz, tendo, como aspiração máxima, um emprego vitalício e a posse de uma mulher, moça e bonita. 

O futuro de Santa Catharina está nas mãos de seus homens públicos, que quizerem fazer mais administração que politica, olhando o exemplo de S. Paulo, o Estado modelar da Federação Brazileira.
Dia 24. Segunda-feira. Manhã nevoenta. O thermometro centígrado marca 23°.
Dormimos no porto de Florianópolis. O vapor ainda aqui passará o dia, descarregando e recebendo carregamento de bananas e farinhas para o Rio da Prata. 

Baixo a terra, a ver mais demoradamente a cidade. 

Hontem, domingo, musica nos jardins, muita gente. Hoje menor movimento. Lanchas e catraias, encostadas á beira do cáes. Outras, de velas entumescidas, atravessam o estreito, rumo de São José. Hontem, á noite, chegou o Jupiter, vindo do Rio Grande. Sae hoje, á tarde, para o Rio de Janeiro. O Florianópolis, também chegou hontem, e hontem mesmo saiu. Veio da capital da Republica, e seguiu para Porto Alegre. 

A antiga Desteno, vista, á noite, de bordo, offerece um bello espectáculo.

Em ponto grande, lembra um presépio, em noite de Natal, na Bahia. Luz, á beira da praia, e luz na encosta da montanha. 

Gastámos seis dias do Rio a Santa Catharina. Já é andar! 

Cada navio do Lloyd é um pedaço ambulante da alma brazileira. O Saturno é um symbolo.
Dia 25. Choveu pela madrugada. Choveu e trovejou. Céo nublado.

São 6 horas da manhã. O ar húmido do amanhecer é ferido por um som agudo e vibrante. É o signal da partida. Vamos deixar Florianópolis, com destino ao Rio Grande. O vapor desloca-se, pouco a pouco, deixando um rastro de espumas nas aguas turvas do estreito.

No convéz, passageiros, de binóculos assestados, observam a cidade, mal desperta, e cujo pudor é apenas entre velado pela gaze de névoa que a envolve, nesta triste manhã de abril a findar. 

Do outro lado, no continente, a cidade de São José, lento e lento, desapparece. A Santa Casa de Misericórdia e a Cathedral de Florianópolis são os últimos vestígios que o meu binóculo pôde alcançar.

Fonte: 

2 comentários:

  1. Muito bom estes registro de Florianópolis pois nos da uma ideia do que se passa a muito tempo em um lugar que tem tudo e não dispõe de condições de infra estrutura para ter uma melhor condição de MOBILIDADE,aproveitando as condições de navegação que muito nos favoreceria com rapidez e menos poluição de carros e acidentes fatais .

    ResponderExcluir
  2. Excelente registro e percepção do autor, destaco o trecho "E ainda ha quem maldiga o estrangeiro, num paiz despovoado como o Brazil, onde o mestiço muito pouco faz, tendo, como aspiração máxima, um emprego vitalício e a posse de uma mulher, moça e bonita.

    ResponderExcluir