segunda-feira, 13 de março de 2017

HIERARQUIA NA PESCA ARTESANAL NÃO DEVE SER CONFUNDIDA COM SUBORDINAÇÃO TRABALHISTA

 
Não é incomum o leigo confundir a hierarquia em uma embarcação de pesca artesanal com subordinação trabalhista. Mesmo a legislação sendo clara, estabelecendo que a pesca artesanal se dá em regime de economia familiar e contratos de parceria, temos em nosso escritório ao menos um caso em que o auditor fiscal do Ministério do Trabalho incorreu neste erro de julgamento e houve por bem lançar várias notificações contra nosso cliente, identificando relação trabalhista a bordo.

No entanto, Vanessa Marion Andreoli, mestre em sociologia pela UFPR com a tese intitulada "NATUREZA E PESCA: Um estudo sobre os pescadores artesanais de Matinhos - PR", disserta:

"Segundo Horochovski (2007), a pesca artesanal enfrenta muitos mais riscos financeiros do que a pesca industrial. Esse fator se dá, principalmente, por ser o pescador artesanal, mesmo que não possua embarcação própria, patrão de si. Ou seja, entre os pescadores artesanais não se estabelecem vínculos empregatícios e as relações de trabalho obedecem à regulamentação específica do setor: cada um assume uma posição na hierarquia da atividade e recebe em troca ganhos de acordo com a valorização social da tarefa desempenhada.".

No tópico "Relações entre os pescadores", há informações fundamentais sobre a hierarquia de tarefas na pesca artesanal com vistas à organização do trabalho a bordo:

"As relações entre os pescadores foram observadas não somente durante as entrevistas e visitas informais, como também na saída de barco que a pesquisadora teve oportunidade de participar. A organização social do grupo pesquisado está assentada tanto nas relações de parentesco existentes entre as unidades familiares, sejam elas nucleares (pais e filhos) ou extensas (envolvendo avós, tios, primos, etc.), como nas relações de compadrio, de amizade, ou até mesmo meramente profissionais.

"Na produção as relações entre a tripulação configuram-se num elemento fundamental para a organização do trabalho. As capturas são coletivas, envolvendo dois ou três pescadores 'camaradas', ou seja, os companheiros de pesca. Na saída de barco que foi oportunizada para a pesquisadora, o mestre estava presente, então, como de costume, este ficava na popa, ou seja, controlando o motor da embarcação. É ele quem guia a canoa para o lugar que acredita que estão os cardumes; percebeu-se que até aceita sugestões, mas os demais pescadores (dois, na ocasião) possuem um respeito muito grande por ele, então evitam dar suas opiniões.

"A partir dessa experiência, pode-se perceber claramente que, enquanto o mais experiente entre a tripulação está presente, todos respeitam sua opinião. Mas quando não está, os camaradas precisam chegar a um acordo para não terem problemas, como demonstra o depoimento abaixo.

"'É difícil quando saímos sem o mestre. Um quer saber mais que o outro, mas a gente entra em um acordo, porque se você já sabe que não vai muito com a idéia do cara, já nem sai com ele, prá evitar confusão. O cara fala que você tem que ir prá um lado, e você vai pro outro, aí já viu... encrenca na certa. O negócio é se dar bem e fazer um acordo bem certo antes de sair.' (pescador P4-26 anos)".

"Podemos perceber que a figura do mestre é bastante importante na saída ao mar, mas não indispensável. Ou seja, a tripulação pode sair para a pesca sem o mestre, mas precisam fazer um esforço de entendimento muito mais intenso, já que quando o patrão está entre a tripulação é ele quem dá as coordenadas, sem dar oportunidade para sugestões dos demais. Outro pescador comenta que:

'A gente já tem mais ou menos a tripulação certa. Os camaradas que a gente sempre gosta de trabalhar a gente prefere, mas quando não dá, tá doente, tem que fazer uma coisa séria, a gente pega uns de fora. Mas tem que ser um que trabalhe, porque levar o cara pra ficar olhando e ganhar como a gente não dá, né?' (pescador P3-25 anos).

"Quando se trata da divisão do pescado, o acordo é bastante claro para os pescadores, que não reclamam porque já é intrínseco ao grupo, ou seja, não está escrito, não é uma lei, mas todos cumprem como se fossem punidos se assim não fizessem.

"'De 100% tira 25% pro camarada, que é um pescador, tipo assim, um auxiliar no caso e ajuda a puxar a rede, escolher o camarão, essas coisas tudo daí é ele que ajuda. E o resto fica pro patrão da canoa. Tipo, pesca o dono e o camarada dele, daí ele ganha 25% e 75% fica 25% pro dono e 50% é da embarcação. Quando o dono da canoa não vai é 50% pra embarcação só e 50% pros camaradas.' (pescador P10-45 anos)".

Até mesmo a forma de divisão da produção descrita acima ou a diferença entre as acomodações a bordo têm sido usadas como argumento para se ver relação trabalhista em embarcações de pesca artesanal, o que é grave equívoco.

Em artigo nomeado "Um por todos, todos pelos peixes", publicado pelo Setor Pesca do Observatório Tecnológico de Santa Catarina, encontramos mais elementos:

"A pesca é conhecida por sua divisão de funções e hierarquia dentro das embarcações. Seja um navio pesqueiro ou um bote de pesca artesanal, cada pescador tem sua função. Não é difícil de entender a importância da divisão de funções se você pensar no espaço literalmente limitado e na importância da precisão de cada atividade. Algumas funções mudam de acordo com a arte de pesca empregada, exceto o mestre. (...).

"Todo o lucro da pescaria é dividido em duas partes: uma será destinada ao dono da embarcação e a outra para as despesas da viagem e pagamento de todos os tripulantes. O mestre ou capitão é o cargo de maior importância. É responsabilidade dele a segurança de toda a tripulação e localização dos pesqueiros. O mestre também é aquele que pilota a embarcação e toma as decisões importantes. Por este motivo sua comissão na divisão de partes é bem maior, de cinco a seis partes. Sua cabine é separada da “maloca”, lugar onde dormem os outros tripulantes, afinal o mestre precisa estar atento à cabine de comando o tempo inteiro. Outra função desta separação é para evitar um possível motim. E acredite, esta possibilidade é grande. As embarcações de emalhe de grande porte passam em média vinte dias em alto mar. O trabalho pesado, a reclusão e a convivência obrigatória durante o período pode ocasionar situações de estresse durante a viagem.".

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