sábado, 25 de julho de 2009

CRISPIM MIRA: mártir do jornalismo e do "Porto de Florianópolis".


O "Porto de Florianópolis" é uma "causa" - e das grandes.
Como algumas "causas", às vezes, têm seu mártir, o desta atende pelo nome de Crispim Mira, advogado e jornalista.

Falar sobre seu assassinato é quase um tabu na capital dos catarinenses, seja em razão do tema dos artigos escritos por ele e que levaram à sua morte - nepotismo e desvio de verbas públicas no Porto de Florianópolis -; seja devido à posição social do autor do crime e seus cúmplices; seja por conta do rito escandalosamente irregular do respectivo julgamento (que levou à absolvição de réus confessos em um júri transferido por mágica da Capital para São José).

Ao tomar posse da cadeira n. 5 da Academia Catarinense de Letras, da qual é patrono Crispim Mira, o escritor Francisco José Pereira proferiu discurso de que vale resgatar alguns excertos para melhor ilustrar o que afirmei:

Crispim Mira nasceu em Joinville, em 02 de setembro de 1880. Aos 20 anos inicia a carreira de jornalista em sua cidade natal, uma carreira que, sob o impulso de apaixonada vocação, só se interromperia 26 anos depois – assassinado na redação de seu jornal Folha Nova, em Florianópolis.

Em 1908 é redator da Gazeta Catharinense do então senador Hercílio Luz. No ano seguinte, em 1909, Crispim Mira inicia um jornalismo mais pessoal, fundando o jornal Folha de Commercio, cujo gerente é Martinho Callado.

É exatamente pelas páginas da Folha de Commercio que, em 1910, Crispim Mira dá início a uma série de artigos em que denuncia o abandono do porto de Florianópolis. Denúncias estas que, 17 anos mais tarde, seriam o pivot de seu assassinato.

A velha questão do porto de Florianópolis e sua importância para o desenvolvimento econômico do Estado, uma antiga preocupação do jornalista – já manifestada, em 1910, pela Folha de Commercio – volta às páginas de seu novo jornal Folha Nova. 

Em fins deste mesmo ano de 1926, a edição de 2 de dezembro de Folha Nova publicara entrevista, que o próprio Crispim Mira fizera, com o comandante Leodegardo Luz – um experiente navegador catarinense – sob o título "São Pessimas as Condições do nosso Porto".Dizia então o comandante Leodegardo Luz:“Florianópolis, infelizmente, soffre as consequencias de não ter um bom porto, pois taes são as suas condições actuaes que quasi seria o mesmo não telo. Dia a dia peoram os canaes de acesso, e, cada vez mais, vamos nos aproximando de um terrível precipicio para o nosso commercio”.E o entrevistado dava detalhes.“No canal norte foi feito um balizamento defeituoso, cerca de vinte metros affastado do rumo certo, para os lados de Tijuquinha. Acontece que os navios, seguindo esse balizamento errado, encalham”. E concluía: “É essa uma triste verdade. Desde pequeno (...) no tempo da monarchia que ouço falar nos 'Melhoramentos dos Portos'. São passados trinta e tantos anos de regimen republicano sem que elle nos apresente melhora alguma”. A "Comissão de Melhoramentos dos Portos" era a repartição pública federal que se ocupava com os trabalhos de drenagem, manutenção dos portos, reparação de embarcações e outros. A referida Comissão estava vinculada ao Ministério da Viação, cujo ministro era o catarinense Victor Konder, irmão do então governador Adolfo Konder.O tema seguiria seu trágico rumo nos primeiros meses de 1927. Já em fevereiro, Crispim Mira resolve entrar em detalhes de nepotismo, de fraude e locupletação indevida de bens do patrimônio público da referida repartição federal, então sob a chefia do senhor Tito Lopez.A edição de Folha Nova de 15 de fevereiro estampava em grandes títulos:“História de uma Repartição Pública Federal onde Alguns Enriquecem e Outros se Locupletam até a Indigestão”. E seguiam denúncias de nepotismo, fraudes e locupletamento ilegal do patrimônio público, todas devidamente relacionadas – incluindo valores e detalhadas circunstâncias.

Tito Lopes, ofendido, procura na manhã do dia seguinte o advogado Ruup Junior e solicita-lhe que constituísse uma comissão a fim de procurar e propor a Crispim Mira um desafio para duelo. “Sua insistência foi tal – diria mais tarde Ruup Junior – que não pude recusar. Procurei então o gal. Vieira da Rosa e o dr. Francisco Gallotti e com eles me dirigi à redação da Folha Nova”. E na redação, após ouvir da referida comissão a proposta de uma retratação ou de uma reparação pelas armas à escolha do jornalista, este fora lacônico: – Minha arma é a pena – colocando, em seguida, as páginas de seu jornal à disposição do ofendido para nela defender-se, exortando ainda Tito Lopes a solicitar uma sindicância para apurar a verdade, ou não, das denúncias publicadas por Folha Nova.No dia seguinte, 17 de fevereiro, Aécio Lopes, filho de Tito Lopez e também funcionário da "Comissão Melhoramentos dos Portos", acompanhado de Antonio Selva, igualmente funcionário da "Melhoramentos dos Portos", e mais João Pio Pereira, motorista da "Melhoramentos dos Portos", este dirigindo o veículo da própria repartição pública federal, dirigem-se à redação de Folha Nova, portando revolver e chicotes. A estes se incorporaria Sebastião Coelho, que já os esperava em local próximo à Folha Nova.Era cerca de 13 horas, Crispim Mira acompanhado de seu filho menor Cláudio, de 14 anos, deixava a redação do jornal, situado na esquina da Tiradentes com Nunes Machado, com acesso por ambas ruas, quando entraram enfurecidos Aecio Lopes, Antonio Selva e Sebastião Coelho e, após agressões com chicote ao jornalista e a seu filho menor, acertam um tiro na boca de Crispim Mira, e logo deixaram a redação, retornando ao carro da "Melhoramentos dos Portos", cujo chauffer os esperava na esquina da Saldanha Marinho.

No Termo de Declarações prestado por Crispim Mira nos autos do inquérito policial aberto nesse mesmo dia do atentado, e tomado no Hospital de Caridade onde fora internado, Crispim Mira identifica como autor do tiro, dizendo ser “um moço que sabe ser filho de Tito Lopes, que subitamente detonou um revolver sobre o depoente, penetrando o projectil pelo labio inferior e no mesmo tempo foi-lhe vibrada uma grande pancada sobre o occipital parte superior, deitando-o por terra...”.

Durante o período de internamento hospitalar de Crispim Mira foram muitas as manifestações dos mais distintos segmentos da sociedade, da política, da religião e outros, refletindo não só o repúdio à agressão física em si e à liberdade de imprensa, senão expressando, sobretudo, o elevado grau de admiração e respeito à pessoa do profissional jornalista. Seguem ilustrativos exemplos destas manifestações, extraídos dos jornais da época:"O sr. Nereu Ramos offereceu incondicionalmente os serviços para a defesa da livre expansão do pensamento, que não pode ser julgada a tiro". 

"Visitando o seu distincto amigo, desejo-lhe todas as melhoras e que possa voltar ao seu posto de trabalho onde tantas provas tem dado de amor á nossa terra – Oswaldo Cabral, Laguna".

"Dr. Abelardo Fonseca. Central, Rio-24. Favor visitar Mira dizendo seu estado. Agradecido – José Boiteux, Rio de Janeiro".

"Dom Joaquim Domingues de Oliveira, arcebispo de Santa Catharina, acompanhado por Frei Evaristo Schumann visita a Crispim Mira communicando-lhe que em todos os collegios, conforme ordem do arcebispo, estavam sendo feitas preces pelo seu estado de saúde. Depois o sr. Arcebispo fez entrega ao jornalista-martir de uma imagem sagrada".

O falecimento de Crispim Mira ocorreu no dia 5 de março de 1927, aos 46 anos de idade. Assinou o atestado de óbito, o dr. Gottsmann.

Centenas de pessoas, já pela manhã, acorreram ao Hospital de Caridade, em cuja capela era velado Crispim Mira. 

O governador Adolfo Konder, acompanhado de Edmundo da Luz Pinto, visitou o jornalista morto. 

A multidão excedia os espaços e transbordava o pátio do Hospital, conforme os jornais da época. 

O comércio fechou suas portas às 13:30 horas e não funcionaram os cinemas locais. 

Crispim Mira teve dez mil criaturas disputando as alças de seu ataúde – registrou a memória popular.

Foram denunciados, Aecio Lopez e seus comparsas Antonio Selva, Sebastião Coelho, e o motorista João Pio Pereira, acusados do assassinato de Crispim Mira. 

O julgamento dos acusados, entretanto, foi desaforado para São José, então de difícil acesso em face das condições viárias da época, e que o fazia um lugar distante. E lá, em 27 de setembro, instalou-se o Tribunal do Júri que absolveu por unanimidade os quatro acusados.

Aquele Tribunal do Júri foi, de fato, cenário de uma verdadeira farsa, cujos detalhes estão expostos no meu livro "As Duas Mortes de Crispim Mira".
Dava-se, a partir daí, um longo e preconceituoso silêncio em torno da obra, da vida e das circunstâncias que envolveram a morte de Crispim Mira, e que perdurou por mais de meio século – uma espécie de segunda morte de Crispim Mira – que só foi interrompido com a publicação do meu já referido livro.

O jornalista Crispim Mira morreu pobre. Por sugestão do Desembargador Pedro Silva foi lançado a público “appello para que este contribua com quaisquer quantias destinadas á formação da importância com que será adquirida uma casa para moradia da viúva e filhos da desditosa victima da cruel aggressão da rua Tiradentes”. 

Assina, Des. Pedro Silva com 200$000. 

E muitas outras doações viriam.

Ano passado, Domingos de Abreu Miranda publicou um artigo no "Observatório da Imprensa" tratando do papel revolucionário do jornalismo. Crispim Mira mereceu destaque:

A luta contra os desmandos do poderio econômico e político geralmente era praticada por pessoas abnegadas cujo principal interesse era ver triunfar a ética. Um destes exemplos foi o joinvilense Crispim Mira, que, por denunciar falcatruas nas obras públicas no porto de Florianópolis, foi barbaramente assassinado, em 1927, dentro da sede de seu jornal Folha Nova, na capital catarinense.

Também em 2008 foi lançado o excelente documentário "Crispim Mira e o Artigo da Morte" dirigido e produzido pelos competentes jornalistas Clésio Pedro Fermiano Júnior e Liliane Ribeiro e Ribeiro.

Mesmo com todo o constrangimento que seu tema causou e ainda causa a certas famílias da alta sociedade florianopolitana, o filme ganhou a capa do caderno "Variedades" do Diário Catarinense, em reportagem de Alicia Alão:

O documentário contextualiza Florianópolis dos anos 1920, faz uma simulação do crime e da morte de Crispim Mira, o julgamento dos acusados e depoimentos de familiares do jornalista e dos acusados, de um médico legista, advogado criminalista, entre outros. Clésio considera as maiores relíquias as fotos do cortejo, que reuniu 10 mil pessoas, numa cidade de 40 mil habitantes. 

- Quando iniciei o trabalho, me perguntaram se eu não temia mexer com pessoas importantes. Enfrentamos esse obstáculo do medo, porque o jornalista trabalha com versões contrárias dos fatos - diz Clésio.

Nas palavras do historiador Enéas Athanázio, entrevistado no documentário, "o atentado contra Crispim Mira, provocando sua morte precoce e cortando a carreira de um escritor de talento é uma página negra da história catarinense, página que, embora amarga, não pode e não deve ser esquecida para que nunca mais se repita".

Como forma de homenagear Crispim Mira na data de aniversário de sua morte, patrocinei, em 05 de março de 2009, a exibição gratuita de "Crispim Mira e o Artigo da Morte", no Cine Clube Sol da Terra.

Entretanto, é obra para ser transmitida a toda a gente de Florianópolis, pela TV aberta, em horário nobre. 

Quem sabe, um dia:




Um comentário:

  1. enriquecido, com mais esta peça da história da capital que optei por morar, só posso agradecer. Por ironia, de controle geomorfológico, deve agora surgir o porto da grande florianópolis na cidade que acolheu a farsa do julgamento, de quem tolheu a vida de quem queria, um porto de verdade.
    Crispim Mira, um bom nome para o novo porto.

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