sábado, 26 de janeiro de 2013

Natal no Mar - Virgílio Várzea


Natal no mar


A Eliseu Guilherme

O capitão tinha dito na véspera que se o tempo se aguentasse e o vento fosse favorável, por aquela semana, e Nossa Senhora os não desamparasse, iriam passar o Natal na sua freguesia, no descanso da viagem. Os marinheiros, ocupados, ao momento, em remendar as velas, à proa, sobre o castelo abaulado, sorriram, por instantes, na doçura daquelas palavras, que lhes alegrava a alma, como um prenúncio suave.
E um rapaz moreno, de vinte anos mais ou menos, que estava sentado à gaiúta, as pernas cruzadas, a fronte pendida sob o boné de pala larga, afagado pelas densas madeixas escuras do seu cabelo anelado, tendo sobre os joelhos uma lousa, onde fazia o cálculo da última singradura andada, ergueu docemente os grandes olhos negros, cheios de um brilho nostálgico, fixou rápido o capitão, o timoneiro robusto, pousando-os longamente, em seguida, sobre o mar azulado. Depois, inclinando outra vez a cabeça, prosseguiu mudamente no cálculo, embranquecendo a pedra de números, que o lápis abria em bordados. Absorvido na tarefa, só se interrompia algumas vezes para folhear as tábuas náuticas.Suspirava então, de leve, como numa abafada saudade.
Levou assim muito tempo, até que o capitão, voltando da popa, onde estivera a deitar a barquinha, perguntou-lhe com a sua voz grossa e áspera:
− Então, quantas milhas andou o patacho?
− Noventa, fez ele de pronto, erguendo o rosto queimado, onde os olhos fulgiam, acesos ainda num clarão de saudade.
A face carregada do velho marujo iluminou-se então duma expansão de bondade, e sua boca alentada, de finos lábios enérgicos, descerrou-se num sorriso de júbilo, sobre os belos dentes alvos. Achegando-se da gaiúta, onde o rapaz, já de pé, pegava as Tábuas e a pedra para descer para a câmara, pousou-lhe a mão sobre o ombro, e, fitando-o muito com os seus olhos claros, raiados de sangue nos cantos pela idade e pela refração do sol no mar, disse-lhe, enternecido, num vago ar paternal:
− Assim, meu rapaz! É puxar pelo casco, é puxar pelo casco! E deixa-te lá de casórios, que tu não tens idade! A Luíza que espere. Faz-te homem, primeiro... A tua mãe, coitada, precisa de ti... Bota pra fora as tristezas! E alegra-te, que vais ainda passar com dia o Natal!...
Enleado de repente por aquelas palavras, a cabeça baixa, os olhos fisgados na tolda, o Venâncio, colhido assim no seu segredo íntimo, nem sabia o que dizer. Mas como o velho Soeiro, que ele tanto respeitava e temia pela sua severidade e rigor em viagem, lhe falasse desta vez com tanta bonomia, ousou responder vagamente, todo rubro, numa titubeação de palavras:
− Não, senhor... não, senhor... eu não penso em casar...
E desceu para a câmara, carregando os objetos, numa pressa de se libertar do “aperto” em que o pusera o velho náutico. Entrou no camarote, e sob o júbilo que o tomava, naquela doce esperança de ir passar o Natal no seu arraial, abriu a caixa da roupa, sacou de dentro um pequeno registro colorido do Senhor do Bonfim, que era o padroeiro do lugar, e beijou-o longamente, pensando na mãe o na amada...
Mas um pampeiro do sul caiu inopinadamente, uma tarde, na antevéspera do dia almejado. E o navio, com o litoral já à vista, pela proa, foi obrigado a fazer-se ao mar. Desde essa hora até ao dia seguinte, ninguém a bordo parara, numa faina contínua, quando o vento começou a amainar e o patacho meteu de novo na bordada de terra. Até à tarde, porém, não se avistou a costa; e a tripulação, agastada com aquele demônio de tempo, praguejava rudemente, perdida agora a esperança de ir passar o Natal em seus lares.
O próprio capitão, de pé ao cata-vento, junto ao homem do leme, mostrava, nesse instante, o rosto carregado como numa contrariedade. No entanto, durante o vendaval, a sua larga fisionomia de leão do oceano se conservara plácida e animada, nessa serenidade incomparável de espírito e de alma, que é a superioridade do marujo ante esse temível adversário — o mar. É que o velho Soeiro tinha também esposa e filhos a quem idolatrava, e mais do que todos, a bordo, sentia o desejo insaciável de mergulhar o coração sequioso de afetos nas carícias e bênçãos do lar, onde todos os que vogam nas ondas encontram sempre um asilo remansoso e sagrado.
Num recanto da popa, entretanto, o Venâncio, a quem o velho afagara nas vésperas, junto à gaiúta alta, satisfeito e feliz por encontrar nele um discípulo digno e que não temia bater-se com as vagas, prometendo dar de si um marinheiro que o saberia honrar; num recanto da popa, o rapaz não cessava de olhar, um momento, o horizonte além, onde lhe parecia ainda ir surgir de repente, sob a névoa dourada do poente, a curva branca e saudosa do seu golfo natal. Ali ficou muito tempo, até que a sineta de bordo o despertou para o quarto.
Já então, para leste, uma cinza sutilíssima se alastrava nas águas. Descia a noite lentamente; na barra verde do ocaso, onde brilhos vagos morriam, na glória do sol que findava, um ponto fulvo pequenino, Vésper, a estrela da tarde, numa cintilação tremulante e faustosa, que convidava a amar, rolava no côncavo azul do firmamento, como uma camândula dourada.
Nas amuradas, à proa, e sobre o castelo arqueado, os marinheiros em grupo, esquecidos já do pampeiro, numa resignação invejável de almas sãs e amoráveis, que não dão nunca abrigo e guarida a ódios mas a amores e mágoas, cantavam saudosamente e em coro essas belas cantigas do sul, que sonorizam as estradas e praias alvas dos sítios pelo tempo do Natal.
Embaixo, na câmara, o capitão, vendo que não chegariam à barra senão ao outro dia, pela tarde, pois estavam ainda a mais de dois graus ao mar, abrira os mapas sobre a mesa para traçar os rumos andados e pôr o ponto na carta. Mas a saudade da família trabalhava-lhe a alma. E, às vezes, quando o canto da maruja estalava mais forte, à proa, sob o ranger surdo dos mastros, ele, subitamente enternecido, os olhos arrasados de lágrimas, erguia a cabeça leonina, branqueada pelos anos, e punha-se a olhar tristemente a luz amarela e saudosa do farolim, pendendo osciladoramente do teto, na sua manga de vidro cercada de um gradil de metal.
Em cima, ao pé do leme, sentado em frente à bússola, na gaiúta fechada, o Venâncio enlevava-se também longamente naquelas cantigas nostálgicas. Conhecia-as bem, pois a sua infância dourada havia deslizado entre elas, num embalamento de júbilo, na sua aldeia adorada. E quantas vezes as cantara, em menino, no bando alegre dos amigos, em noites assim de festa, seguindo, com a lua no céu, de presepe em presepe, os ranchos palreiros das raparigas amadas!
Assim cismava tristemente, quando o coro dos marinheiros, avante, cessou de súbito, num profundo stacato. Fez-se um momento de silêncio, em que só se ouvia o murmúrio saudoso das ondas batendo nas amuradas. Era meia noite, uma dessas meias noites soturnas e quase trágicas do mar.
Então, sob os quadrados alvos das velas nevando o espaço no alto, vozes roucas e másculas gritaram, à uma, do castelo:
− Tocar a Natal! Tocar a Natal!
E logo a sineta de bordo, em repiques vibrantíssimos, de uma consoladora alegria de alvorada de calma, cantou o nascimento divino do Menino Jesus, que docemente ecoou pelas águas, rolando ali, marchetadas de estrias de luz, sob a rede de ouro dos astros.
O capitão, num enlevo, subiu à pressa ao tombadilho, chamando os marujos à ré. E todos, num forte uníssono festivo, que arrebatava a alma, entoaram vigorosamente, na tolda, entre aquelas velas felizes dominando o oceano, este estribilho devoto de um velho hino cristão:
“Salve! ó divino Jesus!
Luz do nosso coração,
Que vieste hoje ao mundo
Para nossa salvação!”
Rio - 1896

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