O Pescador
A diuturna flama, a comburir no espaço,
inda não crepitou. Da noite no regaço
dormem a terra e o mar, dormem placidamente.
Passa então no céu o cortejo esplendente
das estrelas, em torno à pálida sonâmbula.
Silêncio de necrópole. Uma voz notâmbula,
porém, ao longe ecoa: é o canto da saudade
que o marujo desfere em plena soledade.
Distante vem o dia e as auras matutinas
começam a encrespar as águas cristalinas.
O cenário mudou. Agora as ardentias
vão, recamando o mar de revoltas estrias,
projetar-se aos parcéis, à praia alvinitente.
Então o pescador acorda prestamente,
sobraçando lanterna e remos e velame,
corre à faina do mar, antes que a esposa o chame.
Já nas ondas flutua a próvida canoa;
solta a vela ao terral e para o norte aproa.
Ei-lo firme da popa, a manobrar, garboso,
o seu barco veloz sobre o mar tenebroso.
Antes que o sol vergaste os duendes da noite,
com o feixe de luz do espectral açoite
e crave no horizonte o seu olhar primeiro,
se encontra o pescador em cima do pesqueiro.
Atira a poita ao mar e a vela, bem ferrada,
acomoda na proa, embaixo da bancada.
Há prenúncios da aurora. "Inda puxa a maré."
Sobre o fogo da telha aquenta-se o café.
(Não há nada melhor do que tomá-lo quentinho,
- o bom café com pão, no largo mar, cedinho...)
Depois o pescador acende o seu cigarro;
lança ao vento fumaça e, puxando o pigarro,
dá graças a S. Pedro e vai iscar o anzol.
Começa a clarear e já se avista o sol.
Descem chispas de fogo ao mar, refresca o vento.
Nos rochedos, ao longe, um lençol alvacento
de espumas, se adelgaça e rola, em torvelinhos,
no abismo torvo e negro onde assomam golfinhos.
Não teme o pescador: com linhote e chumbada,
é firmar-se na borda e não perder a linhada.
Ei-lo agora em seu posto, atento, vigilante,
os recessos do mar sondando instante a instante.
De súbito o linhote enrista força estranha
que parece agitar no oceano a funda entranha.
Movimento instintivo a mão que tem alçada,
impele o pescador na ríspida ferrada
que faz do curvo anzol a farpa traiçoeira
nas guelras se encravar da pescada matreira.
E agora é tentear o peixe na corrida;
não lhe dar muita linha e nem forçar-lhe a brida,
que ainda pode escapar se não tiver cuidado.
Vai muito a diligência e o esforço redobrado.
Mais um pequeno arranco e rígida arpoada
rasga o aurífero dorso à túrgida pescada...
Quando o sol vai a prumo e encrespa a nordestia
o sereno e brilhante espelho da baía,
recolhe o pescador as poitas e o viveiro
e faz rumo da praia em seu barco veleiro.
Nesse dia sorriu-lhe a sorte caprichosa:
- Comprará um vestido à esposa carinhosa,
um pouco de riscado aos filhos... E pensando
em tais coisas, sorri, se alegra e vem cantando.
Entretanto nem sempre as auras da fortuna
são propícias ao bom e nobre pescador:
hoje, falta-lhe a isca, outras vezes, o tempo
se incumbe de entrevar-lhe o gênio lutador.
Então, se o vento ronda o quadrante de leste
já se pode esperar mau tempo muitos dias;
ei-lo, pois, aplicando em consertar as redes
o forçado lazer das longas invernias.
Quantas vezes, porém, ele se faz ao largo
com o vento à feição e mares bonançosos,
e, já no oceano em fora, o anúncio da borrasca
desenha pelo céu sinais tempestuosos!
Rápido, o pescador ferra o pano à canoa
e murmura uma prece à virgem padroeira:
- Valei-me, vós, Senhora! Em meio a tormenta
protegei o meu barco, oh! santa Mensageira!"
Erguem-se vagalhões, ribomba a trovoada;
cruzam raios no céu; dos ventos fustigada,
a chuva se despenha, em turbilhões, no mar.
Na voragem se engolfa a túrbida canoa.
Falece-lhe a esperança... Eis súbito, na proa,
radiante aparece a Virgem tutelar.
- "Ó rainha do céu, acode ao navegante!"
num arroubo de fé, exclama o pescador.
Milagre! Eis que que um poder estranho retempera
a coragem fugaz do heroico lutador.
E braceja, a remar, com força insopitável
que lhe trouxe o vigor da crença inquebrantável.
Mais forte que a tormenta é o poder da oração.
Pescador, tu tens fé e Deus tem coração!
Ei-la do pescador a vida aventureira,
passada sobre o mar, n'uma existência inteira.
Ora de vento em popa, em dias bonançosos;
ora lutando, audaz, com os tempos tormentosos;
aprendendo a sofrer e aprendendo a esperar;
tendo um profundo amor à solidão do mar,
aos filhinhos, à esposa e uma doce lembrança
da praia onde moureja e brincou em criança.
É rude o pescador, mas sua alma é um sacrário
aberto à compaixão do mártir do calvário.
E por isso Jesus prefere ao esplendores,
à vanglória do mundo, o amor dos pescadores.
São Francisco do Sul - 1927
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